Blog

Riso falso 28/11/2020

Por: Zara Barbosa

Saúde emocional

É proibido sofrer

É PROIBIDO SOFRER
(Leoni / Luciana Fregolente)

É proibido sofrer
Nas noites frias de inverno
Quando o mundo todo te esquecer
É proibido sofrer
Esperando por alguém
Que nunca vai aparecer
É proibido sofrer
Nos dias longos de sol
Na lua cheia e no carnaval
É proibido sofrer
A dor é só um descuido
Já tem remédio pra tudo
Tem alegria em tablete
Pra te manter no ar
Só sofre quem não quiser
Ou não puder pagar
A ordem é ser feliz
Por toda a eternidade
Feito prisão perpétua
Entre sorrisos falsos e amenidades
É proibido sofrer
Eu li, tá fora de moda
É falta de educação
É proibido sofrer
Os dias são de euforia
A felicidade é uma obrigação
É proibido sofrer
Chorar nas tardes de outono
Pensar demais e perder o sono
É proibido sofrer
Não vale a pena a viagem
É muito cara a passagem
É muito escuro no fundo
Ninguém mais vai pra lá
Ninguém te chama pra nada
Nem quer te visitar
A ordem é ser feliz
Por toda a eternidade
Feito prisão perpétua
Entre sorrisos falsos e amenidades
Momentos rasos de normalidade
Não me apareça aqui
Com sua bagagem de infelicidade
Porque a ordem é ser feliz
É proibido sofrer
A ordem é ser feliz
É proibido sofrer

 

      Não é a primeira vez que as músicas do cantor e compositor Leoni Siqueira me suscitam reflexões e me inspiram a escrever. A primeira vez que ouvi essa música, há alguns anos, foi em um momento da minha vida no qual eu estava quase que totalmente imersa nos estudos a respeito da Fenomenologia e de Heidegger, filósofo alemão que embasa o meu referencial teórico e metodológico dentro e fora da Psicologia.

      Os questionamentos surgiram já no título da música: “é proibido sofrer”. Em algumas palavras o autor nos faz pensar no mundo em que vivemos com seus padrões predeterminados e modelos a serem seguidos. Que mundo é esse onde sofrer é sinônimo de inadequação? Onde temos que aparentar estarmos sempre felizes e realizados porque qualquer outra expressão de sentimentos não é permitida? Sofrer significa não produzir e, na nossa sociedade, a produtividade é quem dita as regras. Vivemos em um imediatismo constante no qual não nos é permitido parar para pensar, refletir sobre o sentido das coisas e da nossa vida. Se fizermos isso podemos nos dar conta do quanto nos perdemos de nós mesmos e nos tornamos todos iguais, como robôs programados para fazerem sempre a mesma coisa.  

      No livro Serenidade, Heidegger fala que o homem atual está em fuga do pensamento, que não refletimos sobre nada, apenas calculamos, pensamos de forma automatizada sem parar para refletir sobre o como e o porquê das coisas. O filósofo fala ainda que: "Ficamos sem-pensamentos com demasiada facilidade. A ausência-de-pensamentos é um hospede sinistro que, no mundo atual, entra e sai em toda a parte. Pois, hoje toma-se conhecimento de tudo pelo caminho mais rápido e mais econômico e, no mesmo instante e com a mesma rapidez, tudo se esquece". 
   
   Para Heidegger o tipo de pensamento que vige na atualidade é o que calcula, que este pensamento não medita, não reflete sobre o sentido que reina em tudo o que existe. E é sobre esta reflexão que ele refere-se quando fala que estamos em fuga do pensamento. Essa fuga pode ser exemplificada no seguinte trecho da música: [...]É proibido sofrer/ chorar nas tardes de outono/ pensar demais e perder o sono/ é proibido sofrer/ não vale a pena a viagem/ é muito cara a passagem [...]. Pensar demais, ou seja refletir, só vai nos tirar o sono. Fica a pergunta: essa é realmente uma viagem que não vale a pena? É tão oneroso assim pararmos só um pouco para meditar sobre o sentido das coisas e da nossa vida?
      
      Um outro ponto que faz parte do pensamento de Heidegger e que vale a pena ser pensado nesse contexto é a respeito dos modos de ser do humano. Quando ele fala que existem o modo de ser autêntico e o inautêntico e que o homem transita entre os dois, mas que na maioria das vezes estamos tão robotizados e aprisionados a certos padrões que vivemos no modo inautêntico, sem refletirmos sobre quem somos e o que queremos, se o que fazemos é por nós mesmos ou porque o mundo nos impõe. "...a ordem é ser feliz/ por toda eternidade/ feito prisão perpétua/ entre sorrisos falsos e amenidades/ momentos rasos de normalidade/ não me apareça aqui com sua bagagem de infelicidade/ porque a ordem é ser feliz/ é proibido sofrer...” Esse trecho da música, para mim, deixa claro esse modo inautêntico de ser e me leva a pensar que felicidade é essa que somos obrigados a viver a todo momento e que acaba por nos aprisionar e suprimir quem somos de verdade? De que valem esses “momentos rasos de normalidade”? E que normalidade é essa que nos encapsula e determina quem somos?

 

Fonte da imagem: www.assets.papodehomem.com.br/2016/11/16/19/09/07/32c97c4b-7b0b-4146-8ef2-cc7ea8e978a0/riso-falso.jpg


Zara Barbosa,
Psicóloga da Mulher - CRP-17/2465